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Dia de Luta Antimanicomial é celebrado nesta quarta em Pelotas

Com apoio dos Caps e de uma complexa rede pública de serviços de saúde, serviço de saúde mental procura oferecer tratamento mais humanitário aos pacientes

Gustavo Mansur -

Mãos ocupadas em produzir, olhares focados em criar e mentes envolvidas na construção de uma nova realidade. Assim é a rotina dentro dos oito Centros de Atenção Psicossocial (Caps) em funcionamento em Pelotas, unidades que buscam estimular a autonomia, a independência e a autoestima daqueles que sofrem de transtornos mentais. Junto a estes, uma rede complexa e pública de serviços de saúde é oferecida em nome de um tratamento humanitário e capaz de reinserir na sociedade este paciente que, muitas vezes, se encontra marginalizado. Dispositivos estes conquistados por anos de luta do movimento antimanicomial, que celebra nesta quarta-feira (18) o seu surgimento, seus avanços e renova suas forças para os desafios futuros.

Estes avanços no tratamento psiquiátrico são visíveis. Casas, consultórios, profissionais e médicos espalhados pela cidade. Mas estão, sobretudo, na voz dos pacientes. Da porta - destrancada - para dentro dedicam-se a oficinas de desenho, pintura, artesanato, educação física, marcenaria, entre outras. Momento no qual, como conta uma paciente do Caps Castelo, o primeiro a ser aberto na cidade em 1993, pode-se esquecer das dificuldades do dia a dia, criar novos vínculos e aprender novas atividades. No seu caso, por exemplo, ao começar a frequentar o Centro há dois anos, aprendeu e desenvolveu uma ligação com a pintura, algo que até então não fazia parte da sua realidade e que gradativamente a vai transformando.

Este é o foco, de acordo com a psicóloga e gerente de Saúde Mental do município, Cynthia Yurgel, do trabalho realizado pelos Caps. Ali, o paciente recebe um plano terapêutico constituído por um conjunto de tratamentos alternativos e interdisciplinares definidos individualmente.

O objetivo é, em um primeiro momento, recuperar a pessoa que costuma chegar bastante fragilizada na unidade. Muitos, como relata Cynthia, estão com seus núcleos familiares e vínculos rompidos e sem identidade. Posteriormente é, através destas oficinas, despertar a atenção e o interesse por uma atividade que poderá abrir novos caminhos na sua vida. “A saúde mental é uma questão muito complexa e difícil de tratar. A família adoece junto e muitas vezes não sabe lidar. Nosso trabalho começa nesse momento e em busca dessa reaproximação, tanto entre os familiares, quanto da sociedade.”

Trabalho este que, segundo a avaliação de Cynthia e dos pacientes, tem dado certo. Em comparação ao tratamento manicomial, mais certo ainda. Somente pela mudança de pensamento na forma de tratar estes pacientes já há muitos ganhos. Sem a exclusão, sem supermedicar esta pessoa, sem afastá-la ainda mais de suas referências e de seus contatos, os resultados são positivos e, muitas vezes, surpreendentes. “No Caps nos propormos a abrir caminhos, a fazer uma nova introdução na vida deste paciente. Trabalhamos dentro dos direitos e pela humanização desses serviços, que são capazes de resgatar a dignidade”, diz a psicóloga.

Em outra unidade do Caps, o AD III, que trata de transtornos ligados ao álcool e drogas, também não faltam exemplos do êxito da luta antimanicomial. Hoje o local funciona 24 horas e é de livre demanda, ou seja, o paciente pode recorrer a qualquer momento aos serviços. A psiquiatra Nathalia Barreto conta que o maior ganho para o paciente é a diminuição no número das internações, já que ele pode ser acolhido para um período de desintoxicação, mas o tratamento funciona como nos outros Caps, através de profissionais e oficineiros onde, ao final do dia, o paciente retorna para casa, sem afastar-se da sua vida ou da vida em sociedade.

Já a fala de quem é atendido divide-se em dois momentos. Elogios não faltam. Para o local, para os trabalhadores, para a oportunidade de tentar de novo. Problemas também não. O olhar emocionado e a fala arrastada de quem ainda está em processo de recuperação relatam dezenas de situações de discriminação e preconceito para consigo e suas histórias de vida. Estar na unidade é uma alegria, contam pacientes. Mas no caminho até lá não são poucos os dedos apontados e a falta de compreensão, até mesmo por parte de suas famílias. “A gente está aqui porque realmente precisa, porque nos faz bem, porque conseguimos criar forças para mudar de vida. O problema é que como a doença mental não dá pra ver assim como se vê uma ferida, por exemplo, as pessoas não acreditam, dizem que é bobagem, vagabundagem. Não entendem porque é uma doença da alma e aí só a gente sente a força que ela tem”, conta uma das pacientes.

A rede e a porta de entrada
Ligada a este trabalho desenvolvido pelos Caps há uma série de outros dispositivos que compõem uma rede substitutiva ao tratamento manicomial. Nos últimos anos, conta Cynthia, ocorreu a ampliação dos centros, de seis para oito, sendo estes novos o AD e o Infantil.

Há também um ambulatório de saúde mental em funcionamento no Centro de Especialidades, dez oficinas terapêuticas voltadas a estas patologias nas UBSs, uma equipe de redução de danos e o Retrate, que é uma oficina de reabilitação, trabalho e arte.

O trabalho é interligado, sendo a porta de entrada para os serviços das unidades básicas de saúde. Nestas instâncias, onde o paciente é encaminhado conforme suas necessidades e seu quadro clínico, se prima pelo desenvolvimento da sua autonomia e da inserção na sociedade. “Pelotas é uma cidade de cunho antimanicomial e que possui uma rede substitutiva bastante eficiente e grande. Temos dificuldades, é claro. Mas consideramos um trabalho de êxito”, afirma Cynthia.

Para a secretária de Saúde Arita Bergmann, os serviços oferecidos no município são referência, com destaque para os Caps, que trabalham com uma grande demanda. Isto implica em dificuldades, como a falta de profissionais ou a ausência de perfil destes profissionais para a atividade devido à complexidade destas ações e da doença mental. Dentro destes desafios, inclusive considerando o momento de insegurança econômica vivenciado no país - a rede recebe verbas municipais, estaduais e federais -, o trabalho continua.

As unidades dos Caps, por exemplo, mudaram-se para casas maiores, com exceção do Zona Norte. Uma casa de acolhimento adulto também deverá ser entregue nas próximas semanas à população que está em vulnerabilidade, onde poderá residir por até seis meses e serão desenvolvidas atividades que busquem sua reinserção no mercado de trabalho.

Mesmo com estas conquistas para o paciente de saúde mental, ainda há muito para ser feito. Uma das principais lutas atuais é a abertura de leitos em hospital geral para os casos que necessitam deste tipo de atendimento médico. Em Pelotas, o Hospital Beneficência Portuguesa possui dez leitos e o Hospital Espírita 160, mas ainda é preciso ampliar estes leitos para crianças e adolescentes. “Temos o problema que a oferta de leitos clínicos já é limitada, mas estamos trabalhando durante toda a gestão para que este desejo se concretize”, destaca a secretária. Arita complementa que as residências terapêuticas, para aqueles que não possuem lugar para morar, e que o Hospital-Escola tenha uma unidade de saúde mental são desejos da gestão e configuram mais um grande passo conquistado em nome da luta antimanicomial. “Este movimento tem um símbolo muito importante, de que a saúde mental esteja fora dos manicômios, para que o paciente tenha liberdade de superar seus desafios, de enxergar o outro e também de ver que pode conviver, ser feliz e produtivo.”

Para assistir e refletir
Dois filmes nacionais recentemente lançados abordam a temática da doença mental e da luta antimanicomial, Nise - O coração da loucura, que está em cartaz no Cineflix, no Shopping Pelotas, e A loucura entre nós. O primeiro conta a história da psiquiatra alagoana que dá nome ao longa e que revolucionou a maneira de tratar os pacientes no país, ao humanizar a abordagem até então violenta e degradante dos manicômios. Nesta segunda, inclusive, os pacientes da rede de saúde mental de Pelotas foram contemplados com uma sessão extra e gratuita no cinema, como pôde ser conferido na edição de ontem do DP. Já o segundo é baseado no livro homônimo escrito pelo psiquiatra Marcelo Veras e foi gravado durante três anos dentro do Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira, em Salvador, onde se aborda a linha tênue entre a sanidade e a doença mental.

O 18 de maio
O movimento de luta antimanicomial nasceu pelas mãos dos trabalhadores em saúde mental e tomou forma neste dia em 1987, durante um encontro nacional de profissionais da área. Através de relatos de abusos e violação de direitos humanos sofridos por pacientes dentro de manicômios passou-se a organizar a luta que pautaria o fim destes tipos de tratamentos e destas unidades.

Em 2001, o movimento conquistou a lei 10.216, que determinou o fechamento progressivo dos hospitais psiquiátricos e a abertura de serviços substitutivos, com os Caps, centros de convivências, residências terapêuticas, entre outros.

A bandeira levantada pela luta antimanicomial é de que os usuários e suas famílias tenham acesso a um serviço digno, que respeite seus direitos e que seja pautado pela criatividade e a inclusão social.

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